Há um conhecido ditado italiano que diz: “Traduttore,
traditore”, isto é, “tradutor, traidor”. Ele deixa explícito, de um jeito
mordaz, a principal dificuldade de um tradutor: permanecer fiel ao texto
original. Afinal, para ser fiel ao sentido, às vezes, é necessário sacrificar o
estilo do autor e vice-versa.
Enfim, não existe tradução sem escolhas que, por sua vez,
resultam em maiores ou menores perdas. Obviamente, a perda do sentido original
é o que faz valer a comparação de um tradutor com um verdadeiro traidor: sob o
pretexto de tornar a obra conhecida em outras línguas, acaba-se gerando novos
sentidos ou embaralhando os existentes.
O que dizer então da tradução dos 73 livros que compõem a
Bíblia Católica? Cada qual possuindo, além dos sentidos literais e históricos
afastados de nós em pelo menos dois milênios, sentidos espirituais profundos, acessíveis somente
àqueles que fazem a experiência da vida em santidade.
Tamanha empreitada precisaria de um homem cultíssimo e
santo, que gastasse sua vida e suas orações no intuito de não ser um traidor,
mas um verdadeiro intérprete. Quis a misericórdia de Deus providenciar um homem
assim, que hoje nós conhecemos como São Jerônimo.
Tradução autêntica
Mas como e por que nasceu a única tradução da Bíblia, a
Vulgata Latina, reconhecida como autêntica por um Concílio da Igreja, o
Concílio de Trento (1546-1563)?
O Antigo Testamento, escrito originalmente em hebraico (com
uma pequena parte em aramaico), e o Novo Testamento, escrito em grego, foi
traduzido para a língua latina para atender a Igreja de Roma e, com o Edito de
Milão (313 d.C.), todo o Império Romano.
No entanto, durante o pontificado do Papa Dâmaso (366-384
d.C.), já existiam três versões da Bíblia em latim: as versões de Áquila,
Símaco e Teodocião. Discordantes entre si, mesmo nos textos do Novo Testamento,
utilizavam, para o Antigo Testamento, a versão traduzida para o grego “dos
Setenta” ou Septuaginta, ou seja, uma tradução da tradução.
Essa versão dos setenta sábios hebreus foi realizada a
pedido do rei Ptolomeu do Egito (1 século antes de Cristo) e gozava de uma aura
quase mística: setenta e dois sábios judeus traduziram, de forma solitária e
independente, em celas separadas, os livros sagrados dos hebreus do hebraico
para o grego e, quando confrontaram as cópias, as traduções eram idênticas!
São Jerônimo contesta essa versão em sua “Apologia contra os
livros de Rufino”, dizendo que, além de não existir documento que comprove essa
narrativa, existem outros que atestam “que, reunidos em uma mesma residência
real, eles conferenciaram”, isto é, o que seria um procedimento normal numa
tradução de tamanha envergadura: vários tradutores discutindo entre si qual
seria a melhor tradução para cada passagem.
Críticas à tradução da Septuaginta
No entanto, essa reconhecida tradução da Septuaginta não era
isenta de críticas. Muitas citações dos livros hebraicos feitas pelos Apóstolos
nos livros do Novo Testamento (e até pelo próprio Cristo nos Evangelhos) não
apareciam na versão “dos Setenta”. São Jerônimo diz claramente que:
“Certamente, os apóstolos e os evangelistas conheciam os
Setenta tradutores. Mas de onde vem que eles citam esses textos que não se
acham nos Setenta? O Cristo, nosso Deus, autor de dois testamentos, declara no
Evangelho segundo São João: ‘Aquele que crê em mim, ele diz, conforme diz a
Escritura, de seu interior fluirão rios de água viva’ (Jo 7,38). Com toda a
certeza está escrito aquilo que o Salvador testemunha que foi escrito. Onde
está escrito? A edição dos Setenta não tem este texto…”
São Jerônimo ainda cita mais 5 passagens que são
referências das Sagradas Escrituras, nos textos do Novo Testamento, que não são
encontrados na tradução dos Setenta. Qual seria o motivo? Segundo ele,
investigou entre os sábios hebreus do seu tempo:
“Os judeus dizem que se agiu por medida de prudência, de
modo que Ptolomeu, que cultuava a um só deus, não surpreendesse mesmo junto
aos hebreus uma dupla divindade, os quais ele tinha em muito alta estima porque
pareciam cair no dogma de Platão. Com efeito, onde quer que a Escritura ateste
algo sagrado sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, ou eles traduziram
diferentemente ou então eles guardaram um silêncio absoluto, de modo a
satisfazer ao rei e não divulgar o segredo da fé.”
As profecias que se cumpriram
Outro grande motivo que levou São Jerônimo a traduzir
diretamente do hebraico para o latim, e não utilizar a versão dos Setenta, é
que essa versão tinha sido feita um século antes de Cristo, quando não havia
ainda ocorrido todos os fatos históricos referentes ao Messias predito nos
textos sagrados.
Uma coisa é traduzir fatos que constam em forma de profecias
e ainda não se realizaram. Outra, completamente diferente, é traduzir profecias
que, devido à Paixão e Ressurreição de Cristo, se tornaram também
fatos históricos. Ou, como mesmo disse São Jerônimo: “Aquilo que melhor
entendemos também exprimimos melhor”.
Nem passou despercebido por ele que, com a destruição de
Alexandria (48 a.C.), a própria tradução “dos Setenta” possuía quatro ou cinco
versões diferentes em uso pelas diversas Igrejas Cristãs.
Qual seria a mais fiel?
Para resolver todas essas dificuldades, a partir de 386
d.C., São Jerônimo passa a morar numa gruta em Belém. Gastava seus dias e
noites em orações e na tradução da Bíblia. Aproveitou-se do seu excelente
domínio do latim, do grego e do hebraico. E para aprender esse último idioma,
ele mesmo diz em sua Carta 125: “quantas fadigas isso me custou; quantas
dificuldades enfrentei; quantos desânimos precisei superar” (…).
Não foram 34 anos fáceis até a sua morte em 30 de setembro
de 319 d.C. (ou 320). Enfrentou crises na Igreja local de Jerusalém; e críticas
e mais críticas sobre suas traduções. Note-se que recebeu críticas até mesmo
de Santo Agostinho, com quem correspondia regularmente,
incomodado pelas diferenças entre a Vulgata e a Septuaginta. Divergências que
foram superadas em favor do santo anacoreta de Belém.
É importante salientar que, São Jerônimo não criticava a
Septuaginta. Reconhecia a sua importância e constantemente alegava em sua
defesa o seu caráter de “encomendada” pelo rei do Egito: “Donde eu suponho que
naquele momento os Setenta não quiseram revelar aos pagãos os mistérios de
sua fé, para não dar aos cães o que é santo, nem pérolas aos porcos”. Mas
defendia firmemente a necessidade de uma tradução que fosse muito mais fiel ao
texto hebreu original e, principalmente, à tradição passada pelos Apóstolos e
Evangelistas.
Tradutor ou traidor? Muito mais que um tradutor, um santo
que buscava verdadeira inspiração antes de traduzir. Papa Clemente VIII, ao se
deparar com a magnitude de sua obra, disse: “Jerônimo foi assistido e inspirado
pelo Céu para traduzir as Sagradas Escrituras”.
Embora, nos séculos XX e XXI, tenha crescido enormemente os
conhecimentos filológicos que levaram muitos a realizarem novas traduções a
partir dos originais dos textos sagrados, multiplicando as versões da Bíblia,
podemos ainda perguntar: “Contam também com a inspiração do Espírito Santo? Traduttori, traditori?”.
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