Viver é belo e bom, mas
conviver é melhor. Contudo, para tanto, há que aprender a se relacionar com o
diferente, o que é um desafio que nos humaniza, se a gente não se fecha no
nosso mundinho, às vezes medíocre. Por que é tão difícil conviver com o
diferente?
No Brasil, tornou-se difícil
conviver com as diferenças por vários motivos, mas, principalmente, porque
vivemos em uma sociedade capitalista, uma sociedade estruturada para reproduzir
a opressão, a discriminação, a violência social e negar a beleza e a
importância do outro na nossa vida. O comportamento geral é marcado por falsos
valores que são trombeteados aos quatro ventos e seduzem as pessoas: o
individualismo, o consumismo, o ter, o acumular, o competir. Isso desumaniza as
pessoas, pois ninguém é uma ilha, vivemos interconectados na teia da vida.
Viver é belo, mas conviver é
muito mais belo e imprescindível. Conviver dá mais sentido à vida e é uma via
de mão dupla, mas para conviver é preciso conhecer o outro e para conhecer é
preciso conviver. Para conviver é preciso ouvir e dialogar. Dialogar supõe
respeito e este, por sua vez, supõe viver o amor para além de um sentimento,
como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O diferente de nós que
não é opressor não é uma ameaça. É algo que pode nos fazer melhor como seres
humanos. E em tempos de mundo virtual e de pandemia, com o necessário
isolamento social e/ou o distanciamento físico, o diálogo se torna mais
desafiador e necessário. É preciso exercitar.
Eu me sinto mais humano depois
que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral africana,
com pessoas que se declaram ateias, com pessoas com orientação homoafetiva nas
suas mais distintas formas de concepção de si mesmas. Pessoas que seguiram toda
sua vida tentando se entender enquanto seres humanos neste mundo, vivendo
tantas formas de angústia e de sofrimento por não serem escutadas e nem
compreendidas, por causa da falta de diálogo.
Por que em pleno século XXI, o
preconceito e a intolerância no Brasil estão crescendo? Até quando uma minoria
com poder econômico, político, midiático e religioso vai impor o modo da
maioria das pessoas existirem? O preconceito, a discriminação e a intolerância
se reproduzem cotidianamente no Brasil, injustamente.
Vivemos sob um sistema
econômico que idolatra o mercado desde 1500, quando europeus colonizadores
invadiram o Brasil e iniciaram o processo de exploração. Estima-se que existiam
no Brasil mais de 1.200 povos indígenas falando cerca de 1.200 línguas. Há 521
anos, perduram no Brasil relações sociais escravocratas, de dominação, ou seja,
estruturas legais, políticas e econômicas que reproduzem e ampliam a injustiça
social, a escravização, a intolerância, a discriminação e o preconceito,. Isso
beneficia a classe dominante, pois se admitirem que toda pessoa deve ser
respeitada na sua dignidade humana não poderá haver um monte de violências
sorrateiras que são impostas à maior parte da população.
Até 13 de maio de 1888,
reinava no Brasil, oficialmente, a escravidão, com milhões de irmãos e irmãs
nossos, povo negro arrancado à força da mãe África, onde viviam em liberdade, e
jogados navios negreiros – mais de 12,5 milhões de negros e negras
escravizados/as – milhares jogados ao mar durante a travessia.
No Brasil, como mercadoria
foram escravizados, vendidos e açoitados no pelourinho. Os relatos da
escravidão no Brasil são dramáticos e horripilantes. Em 1850, com a Lei de
Terras, fizeram o cativeiro da terra, 38 anos antes de se fazer a abolição
formal e mentirosa da escravidão. Legalizaram a escravidão da terra ao
determinar legalmente com a Lei 601, de 1850, que poderia acessar a terra
apenas quem por ela pagasse.
Os negros e negras
escravizados/as não podiam comprar terra, pois foram libertados de mãos vazias,
pavimentando, assim, o caminho para a escravidão contemporânea que persiste até
hoje.
Assim, para justificar a
tremenda injustiça das atuais leis trabalhistas e previdenciárias, é preciso
estimular cotidianamente preconceito, discriminação e intolerância, tudo para
disseminar a ideologia segundo a qual a maioria da classe trabalhadora deve
sobreviver na miséria apenas com migalhas, enquanto a elite goza luxo e
mordomia. Não são por acaso as discriminações e intolerâncias, elas são
estrategicamente planejadas e executadas.
Quem ganha muito com as
discriminações e intolerâncias é a classe dominante. Caluniar, difamar e
injuriar de muitas formas é antessala para explorar e violentar logo em
seguida, pela marginalização, exclusão, empurrando as pessoas para sobreviver
sendo humilhadas de mil formas.
Ao longo da história da
humanidade, sempre a classe dominante escolhe os grupos que serão os bodes
expiatórios e as bruxas a serem execradas. Antes, foram os bárbaros, os
gentios, as bruxas, os considerados hereges e atualmente continuam sendo as
mulheres, os negros e as pessoas LGBTQI+, entre outros.
Em uma sociedade capitalista,
quem tem poder econômico passa a ter poder político e jurídico e com esses
poderes nas suas garras definem na prática quem deve ser discriminado e
excluído da mesa farta da classe dominante. Se não discriminarem, terão que
partilhar terra, riqueza, renda e poder. Se houver a partilha, todos ficarão em
pé de igualdade e deverão ser respeitados. Logo, manter e reproduzir as
discriminações são condições necessárias para manter a injustiça social que
garante o luxo e a mordomia de uma minoria à custa da subjugação da maioria do
povo.
Há vários tipos de
preconceitos, de discriminação e de intolerância: os escrachados, os sutis, os
mascarados, os que falam com “voz mansa”, mas apunhalando pelas costas, entre
outros. Precisamos sempre nos perguntar: o jeito com o qual eu analiso a
realidade, os problemas, as injustiças e as violências beneficia a quem?
Se minha análise da realidade
ajuda a reproduzir na prática as violências, então estou sendo reprodutor/a da
ideologia dominante, que é um mascaramento da realidade. Se assumo a ideologia
dominante repleta de ideias da classe dominante, ideias particulares,
difundidas como se fossem ideias universais, mas são apenas os pontos de vistas
da elite que está no poder, ideias que lhes interessam, assumo que não sou
neutro e, de fato, ninguém o é: consciente ou inconscientemente, voluntária ou
involuntariamente, todos nós temos lado e sempre tomamos partido diante das
situações de conflitos. Inclusive quem diz “sou neutro” jamais é neutro.
Em uma sociedade com brutal
injustiça social, quem diz ser neutro está se colocando do lado dos opressores
e exploradores. A partir de qual lugar social pensamos e agimos? “O lugar
social determina o lugar epistemológico”, diz Karl Marx. Ou seja, se vivo na
periferia sendo marginalizado, vejo o mundo a partir da ótica da periferia.
Quem faz parte da pequena
burguesia, eufemisticamente chamada de classe média, vê o mundo a partir da
classe média. Quem é empresário vê o mundo a partir da empresa. Quem é
latifundiário ou empresário do agronegócio vê a realidade a partir do
latifúndio. Estando em uma sociedade injusta socialmente, faz-se necessário
sempre perguntar: a partir de qual lugar social estou falando, pensando e
agindo? Isso para que “oprimido não seja hospedeiro de opressor”, para que
“explorado não seja cúmplice dos exploradores”. Pois a opressão não seria tão
forte se os exploradores e violentadores não encontrassem apoiadores no meio
dos explorados e violentados, já dizia Hannah Arendt.
Para superarmos os
preconceitos, as discriminações e a intolerância temos que fazer muitas coisas
de forma sincronizada. A primeira, é adquirirmos um jeito crítico de ler e interpretar
a realidade. Temos que reconhecer que ninguém nasce santo ou endiabrado.
Nascemos humanos e as
condições sociais objetivas podem nos humanizar ou nos desumanizar. Já dizia
Rousseau: “O homem nasce bom, a sociedade é que o perverte”. Urge conviver com
pessoas e grupos injustiçados/as. Sentarmos todos e todas na mesma mesa e partilhamos
a vida, a fé, o pão, as alegrias e as dores. Entretanto, essa mesa, a da
partilha e do diálogo, precisa ser no mundo dos empobrecidos e injustiçados. O
Deus, mistério de infinito amor, invocado sob muitos nomes, se apaixonou pelo
outro, o diferente: o humano. E armou sua tenda entre nós a partir dos últimos:
sem-terra, sem-casa, sem dignidade.
Fonte: https://www.ecodebate.com.br/2021/02/25/conviver-com-o-diferente-nos-humaniza/