Não é possível entrar no
'mistério de Deus' sem antes descobrir que este Deus está comprometido com a
nossa realidade.
Já se
perguntou o que sua relação com o sagrado tem a ver com sua vida concreta? De
acordo com o teólogo Teilhard de Chardin, “não somos seres humanos que temos
uma experiência espiritual. Somos seres espirituais que vivemos uma experiência
humana”. Somos sujeitos das nossas relações com o mundo, com os outros e com
Deus. Realizamo-nos como seres humanos em nossas relações. A espiritualidade é
a dimensão da relação com o Absoluto.
Construir
uma ética assentada em convicções profundas e sólidas talvez seja a razão que
motiva muitas pessoas a buscar a espiritualidade. Contudo, é importante
diferenciar espiritualidade de religiosidade ou de práticas religiosas. A
religião é a forma que a espiritualidade assume através de um conjunto de
doutrinas, crenças, relatos, símbolos, tradições, ritos e hierarquias. Já a
religiosidade é uma qualidade do indivíduo que vive sua religião. E a
espiritualidade é uma dimensão humana anterior às religiões. A busca espiritual
é a busca da consciência do último da vida, do discernimento para o equilíbrio espiritual,
da vida em comunidade.
Espiritualidade
cristã é a maneira de viver de um povo, é movimento produzido pelo Espírito de
Deus. É viver a totalidade da vida conforme o Evangelho. A raiz da
espiritualidade cristã é essencialmente trinitária. Deus é Pai, é Filho, é
Espírito Santo. A Trindade está na experiência de Deus que se mede pelo amor.
Quem ama compreende a Trindade. O ser humano é um reflexo do Espírito, é imagem
de Deus pela sua capacidade de unir-se aos outros, de viver em comunhão e de doar-se
em liberdade. O ódio, a violência e a injustiça obscurecem o reflexo da
Trindade na pessoa e na sociedade. A paz e a justiça são como reflexos da
participação da vida na Trindade visíveis na história.
Toda
pessoa é um mistério sagrado e revela a Trindade a partir de suas condições ou
modo de ser. Cada pessoa humana é criada a imagem do próprio Deus vivo; imagem
que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profunda e plena explicação de
si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, reveladora de Deus ao homem
e do homem a si mesmo. Em Cristo, a Igreja convida a reconhecer em toda e
qualquer pessoa, sobretudo nos pobres e discriminados e em todo aquele que
sofre, um irmão “pelo qual Cristo morreu” (1Cor 8,11).
Todo
ser humano é reflexo do amor do Criador, o Pai (Cl 3,10) como fonte de amor.
Todo ser humano reflete o Filho, porque foi criado por meio do Filho e em vista
Dele (Cl 1,15-17). Todo ser humano reflete o Espírito que imprime nele certo
reflexo daquilo que ele é: Espírito de unidade e de saída de si para amar. Amar
é agir como Deus. Deus-Pai cria cada um para que seja ele mesmo, vivendo em
comunhão com o outro. A comunidade é o reflexo coletivo deste amor. A pessoa
humana, “por ser à imagem de Deus, não é uma coisa, mas alguém.
A
Igreja é uma comunidade visível: nela tocamos a carne de Jesus, de maneira
singular nos irmãos mais pobres e sofredores, através da solidariedade, das
obras, da misericórdia, e da justiça social. “Ainda há cristãos que insistem em
seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da
adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa
autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor.
Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão
pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no
cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à
gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e
realização autorreferencial. (...) Muitas vezes, contra o impulso do Espírito,
a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de
poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva
importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos”
(Gaudate et exultate, 57–58).
Que
cada cristão busque os rostos dos santos espalhados entre o povo de Deus, e
reconheça neles o sinal real e efetivo da presença da misericórdia de Cristo. E
que todas as suas ações, comportamentos e normas tenham como referência a
pessoa humana que existe no próximo, principalmente nos pobres e discriminados.
Todo movimento em direção ao outro vai configurando nosso caráter e nossa
versão daquilo que acreditamos que é viver como seres humanos.
Pensar
a vida do ponto de vista da ética não é algo estranho ao nosso cotidiano. Não é
possível entrar no ‘mistério de Deus’ sem antes descobrir que este Deus está
comprometido com a nossa realidade. O mundo, as pessoas, a história, fazem
parte misteriosamente da vida de Deus que se fez carne e habitou entre nós. A
experiência cristã de Deus é encarnada na realidade. A ética é forma por
excelência de testemunhar o amor de Deus por todas suas criaturas. Pois, “o que
é que resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas que não
desaparecem? Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não
desaparecem” (GS, 65). O cristianismo é uma religião ética.
*Élio Gasda é doutor em
Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo
global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo
e economia (Paulinas, 2016).
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