domingo, 17 de maio de 2020

Espiritualidade cristã e ética


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Não é possível entrar no 'mistério de Deus' sem antes descobrir que este Deus está comprometido com a nossa realidade.

Já se perguntou o que sua relação com o sagrado tem a ver com sua vida concreta? De acordo com o teólogo Teilhard de Chardin, “não somos seres humanos que temos uma experiência espiritual. Somos seres espirituais que vivemos uma experiência humana”. Somos sujeitos das nossas relações com o mundo, com os outros e com Deus. Realizamo-nos como seres humanos em nossas relações. A espiritualidade é a dimensão da relação com o Absoluto.

Construir uma ética assentada em convicções profundas e sólidas talvez seja a razão que motiva muitas pessoas a buscar a espiritualidade. Contudo, é importante diferenciar espiritualidade de religiosidade ou de práticas religiosas. A religião é a forma que a espiritualidade assume através de um conjunto de doutrinas, crenças, relatos, símbolos, tradições, ritos e hierarquias. Já a religiosidade é uma qualidade do indivíduo que vive sua religião. E a espiritualidade é uma dimensão humana anterior às religiões. A busca espiritual é a busca da consciência do último da vida, do discernimento para o equilíbrio espiritual, da vida em comunidade.

Espiritualidade cristã é a maneira de viver de um povo, é movimento produzido pelo Espírito de Deus. É viver a totalidade da vida conforme o Evangelho. A raiz da espiritualidade cristã é essencialmente trinitária. Deus é Pai, é Filho, é Espírito Santo. A Trindade está na experiência de Deus que se mede pelo amor. Quem ama compreende a Trindade. O ser humano é um reflexo do Espírito, é imagem de Deus pela sua capacidade de unir-se aos outros, de viver em comunhão e de doar-se em liberdade. O ódio, a violência e a injustiça obscurecem o reflexo da Trindade na pessoa e na sociedade. A paz e a justiça são como reflexos da participação da vida na Trindade visíveis na história.

Toda pessoa é um mistério sagrado e revela a Trindade a partir de suas condições ou modo de ser. Cada pessoa humana é criada a imagem do próprio Deus vivo; imagem que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profunda e plena explicação de si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, reveladora de Deus ao homem e do homem a si mesmo. Em Cristo, a Igreja convida a reconhecer em toda e qualquer pessoa, sobretudo nos pobres e discriminados e em todo aquele que sofre, um irmão “pelo qual Cristo morreu” (1Cor 8,11).

Todo ser humano é reflexo do amor do Criador, o Pai (Cl 3,10) como fonte de amor. Todo ser humano reflete o Filho, porque foi criado por meio do Filho e em vista Dele (Cl 1,15-17). Todo ser humano reflete o Espírito que imprime nele certo reflexo daquilo que ele é: Espírito de unidade e de saída de si para amar. Amar é agir como Deus. Deus-Pai cria cada um para que seja ele mesmo, vivendo em comunhão com o outro. A comunidade é o reflexo coletivo deste amor. A pessoa humana, “por ser à imagem de Deus, não é uma coisa, mas alguém.
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A Igreja é uma comunidade visível: nela tocamos a carne de Jesus, de maneira singular nos irmãos mais pobres e sofredores, através da solidariedade, das obras, da misericórdia, e da justiça social. “Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. (...) Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos” (Gaudate et exultate, 57–58).

Que cada cristão busque os rostos dos santos espalhados entre o povo de Deus, e reconheça neles o sinal real e efetivo da presença da misericórdia de Cristo. E que todas as suas ações, comportamentos e normas tenham como referência a pessoa humana que existe no próximo, principalmente nos pobres e discriminados. Todo movimento em direção ao outro vai configurando nosso caráter e nossa versão daquilo que acreditamos que é viver como seres humanos.

Pensar a vida do ponto de vista da ética não é algo estranho ao nosso cotidiano. Não é possível entrar no ‘mistério de Deus’ sem antes descobrir que este Deus está comprometido com a nossa realidade. O mundo, as pessoas, a história, fazem parte misteriosamente da vida de Deus que se fez carne e habitou entre nós. A experiência cristã de Deus é encarnada na realidade. A ética é forma por excelência de testemunhar o amor de Deus por todas suas criaturas. Pois, “o que é que resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem” (GS, 65). O cristianismo é uma religião ética.


*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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